Análise de discurso e educação em ciências: inaugurando uma série

Embora tenha criado esse blog já há algum tempo para divulgar o andamento de minhas pesquisas, de meus orientandos e compartilhar  andamento de disciplinas  que ministro na pós-graduação, o pouco tempo e o receio que essa divulgação mais confunda do que esclareça têm resultado na pouca atividade do blog.
Escrever academicamente num blog não é tão mais fácil do que escrever um artigo, embora a produção possa ser bem maior. Os riscos são grandes, pois os controles sobre a escrita passam a ser muito mais pessoais do que institucionais.

No entanto, como o interesse pela Análise de Discurso, ao menos por conhecê-la um pouco melhor, tem crescido na nossa área de educação em ciências e educação matemática, e como se trata de um campo extremamente complexo, resolvi aceitar o risco, e inicio hoje uma série de apontamentos sobre Análise de Discurso no campo da educação em ciência e matemática.

Haverá imprecisões, que, em sendo um blog, @s leitor@s certamente poderão me ajudar a minimizá-las.
Mas, penso que dificilmente conseguirei confundir mais do que as confusões que já têm circulado por corredores, bares e mesmo seminários e mesmo bancas de defesa sobre esse tema em nossa área, dada a distância que separa algumas das nossas formas mais tradicionais de pensar na área e o aquilo que nos convida a pensar a Análise de Discurso.
Confusões, portanto, absolutamente compreensíveis, resultantes da confluência certamente tensa entre, de um lado,  o grande interesse, e de outro, a grande complexidade, diversidade e dinamismo desse campo. Afinal de contas, desde a década de 60 as análises de discurso, em suas diferentes perspectivas, têm revisto seus conceitos e noções, modificado e até mesmo entrelaçado aspectos de suas perspectivas mais originais.
Sejamos diretos: a AD incomoda. E não apenas no campo da educação científica e matemática. Ela tem incomodado todo o campo das ciências humanas, principalmente o da sociologia, quanto o campo da própria lingüística, o da comunicação (principalmente na França, mas já também um pouco no Brasil), o campo da filosofia, da filosofia da linguagem, o da psicologia e, mais importante, o da epistemologia. Isso acontece na medida em que ela questiona certezas muito arraigadas e inconscientes em que esses campos de conhecimento se sustentam epistemologicamente. Mas penso ser esta a principal função da AD, a de causar incômodos intelectuais, incômodos que produzem pequenos deslocamentos. Não se trata de fundar novas legiões… de trazer a luz salvadora… ou a verdade dos textos analisados, nem sequer a melhor perspectiva de análise, mas justamente de nos mostrar sobre que pressupostos arraigados e inconscientes funcionam nosso estar e ser no mundo. E isso, pela constituição e a experimentação de um modo de ler específico os dizeres e visualidades que circulam e constituem a sociedade. Comecei a aprender isso com AD de Pêcheux, pelos trabalhos de Eni Orlandi. E hoje, aprofundo isso com os trabalhos de Foucault.

Este primeiro texto é muito mais um convite e e no final dele elencarei alguns temas que pretendo comentar nas próximas postagens.
Mas antes dos temas, algumas considerações gerais.
O campo da AD possui muitas particularidades que colocam desafios específicos e extremamente interessantes no mundo acadêmico e intelectual de modo geral, como já mencionei.
Se você ouvir alguém dizer ou se colocar numa posição que esteja silenciosamente dizendo “sei tudo sobre AD”… desconfie. Se você ouvir alguém dizer ou se colocar numa posição que esteja silenciosamente dizendo “esta perspectiva sobre AD (a minha) é a correta”… desconfie mais ainda. Se esses dizeres, ainda que silenciosos, forem proferidos numa explícita performance de força, de modo autoritário e arrogante (e geralmente covardemente contra alguém mais fraco) desconfie ainda mais, pois é mero “foucaultianismo” de resenhas, de aparências, já que, neste caso, Foucault não está sendo mobilizado nem sequer para compreender sua própria posição nas relações de poder institucionais das quais seus dizeres são o produto.
É impossível contornar tão claramente o que seria o campo da AD. Portanto, não é incomum encontrar num mesmo texto autores tão distintos em vários aspectos quanto Bakhtin, Foucault, Pêcheux e até Wittgenstein ou Pearce ou Greimas ou Benveniste ou Umberto Eco ou Paul Ricoeur entre inúmeros outros como os da sociolinguística. Grosso modo esse campo, o da AD, representaria todo um conjunto de trabalhos muito diversificados, de diferentes áreas institucionalizadas, que trabalham as relações entre linguagem e a sociedade, que consideram que os sentidos não estão no texto (seja ele verbal, oral ou escrito, ou audiovisual ou imagético), mas se relacionam a condições de produção das quais o texto em si é apenas uma delas. Mesmo que certos autores não se enquadrem nessa perspectiva ampla que coloquei, podem trazer contribuições às análises feitas nessa perspectiva
Se você está procurando trabalhar com AD, está pressupondo que o que vai estudar é algo que acontece na sociedade e na cultura, quer levá-las de algum modo em consideração na sua configuração e abordagem do problema e sabe que o que analisar a linguagem, tomá-la como objeto de estudo é um modo de conseguir este intento. Há abordagens que levam e conta a linguagem, mas não estão pressupondo mecanismos sociais e culturais associados aos problemas investigados. Essas não podem ser consideradas do campo da AD.
Ora, mas isso recobre um espectro bastante amplo de perspectivas diferentes, em que noções como as de poder, ideologia, formação discursiva, gêneros discursivos, sujeito, discurso, linguagem, materialidade, serão em algumas mais em outras menos mobilizadas, e com sentidos um tanto diferentes quando mobilizadas, e haverá sobreposições. Qualquer um que trabalhe com AD sabe que trabalha num campo com certo grau de flexibilidade, cujo rigor precisa ser avaliado internamente e não externamente. Se você está diante de alguém que está buscando um purismo… desconfie… está diante de alguém que, ou por si, ou por outros, está mais preocupado em construir um território para reinar, já que busca soberania. Nada menos foucaultiano… Conhecer um pouco de AD não significa apenas saber os diferentes sentidos que noções e conceitos como esses implicam. A literatura que aponta essas diferenças já é vastíssima. Mas longe de ter uma unanimidade e inequivocalidade que sustente um dedo em riste e uma fala arrogante num espaço público de exercício e ensaio acadêmico. Compreender efetivamente AD reside justamente em saber quando essas diferenças importam dadas as questões em jogo para as quais a AD foi mobilizada. Embora a AD não se reduza a uma metodologia (isso será um tema de outra postagem), ela serve, digamos assim, a algum propósito, a menos que se faça pesquisa em AD propriamente dita, o que certamente não é o meu caso e os casos em que oriento.
E aí reside um grande problema e desafio para a nossa área. É preciso ter clareza se seu interlocutor que diz que entende de AD, ou estudos culturais ou estudos foucaultianos está mobilizando elementos dessa perspectiva para a nossa área, de ensino de ciências e matemática ou passou efetivamente para a área de AD ou estudos culturais ou estudos foucaultianos. Nada contra essa passagem, muito pelo contrário; ela tem pluralizado nossa vida intelectual e deslocado nossas formas de nos relacionarmos com os outros, com o ambiente, com o mundo. Mas se seu interlocutor está dentro do campo da AD (ou dos estudos culturais ou dos estudos foucaultianos), o regime de produção de seu discurso e, portanto, o que passa a ser importante ou não para ele, pode ser muito diferente do que seria para nós, ou seja, para aqueles que se mantêm no campo da educação em ciências e matemática.
Por exemplo, há um texto extremamente interessante em que Gregolin busca discutir o conceito de Formação discursiva para Foucault e para Pêcheux, traçando um percurso dessa noção. Ora isso é importante para a própria AD e as análises que são apresentadas ali têm o sentido de um exemplo e não estão exatamente no foco do artigo. Embora as análises sejam interessantes, a AD não está servindo ali a um propósito outro que não ela própria (no caso, a compreensão do papel dos comerciais da mídia televisiva sobre as identidades de gênero). A AD não pode problematizar sozinha essa temática. Ali, importam nuanças teóricas.
Tive o prazer de ter Eni Orlandi na minha banca de doutorado em 2002. E Eni, que certamente sabe muito sobre AD, leu meu trabalho como um trabalho do campo da educação, do ensino de física e não como um trabalho do campo da AD. Se o lesse como trabalho do campo da AD certamente não teria sido aprovado na banca… Mas isso estava muito claro pelas questões que eu buscava responder, pela construção da problemática do meu trabalho.
Nós do campo do ensino/educação de/em ciências e matemática estamos num campo em que palavras como “conteúdo”, “pensamento”, “conhecimento” têm um lugar central, marcado por interpretações que, remontando ao Iluminismo, praticamente excluem a linguagem (confiram oposição Iluminismo X Romantismo Alemão), as relações entre linguagem e sociedade e linguagem e sujeito, assim como as relações de poder. E alguns apontamentos sobre isso serão abordados em próximas postagens. Trata-se de uma ontologia em a realidade é apenas composta por sujeitos e fatos (objetos, fenômenos). Qualquer autor que se traga do campo da AD (e provavelmente dos estudos culturais), seja mais inclinado a Pêcheux, Orlandi ou Foucault, trabalhará com outro ontologia. E isso é que importa se estamos no campo da educação em ciências e matemática. As implicações neste campo dessa outra ontologia, em que além de coisas e pessoas no mundo existe também linguagem.
Fazer esta aproximação do nosso campo com a linguagem (nesta concepção discursiva de linguagem), sem sair do campo do ensino de ciências e matemática, já representa um esforço intelectual, teórico e metodológico gigantesco. Porque a tensão é historicamente enorme. E que não agradará nem gregos, nem troianos…
Embora muitos trabalhos hoje remetam à linguagem esta recebe ainda tratamentos que se enquadram dentro de limites muito estreito que mantêm os sentidos “tradicionais” daqueles termos pilares da área. O social, quando aparece, em geral trata apenas do social imediato, as relações face-a-face,  permanecem no nível da enunciação (daí a grande mobilização na nossa área de autores como Bakhtin, por exemplo).  Não estou dizendo que isso não tem seu valor. Estou apenas apontando o quão refratária é nossa área para uma visão que vai questionar muitos elementos que estão na base (ilusória) da nossa concepção de ciência, de verdade, de relação entre ciência e sociedade. Quem busca AD não está buscando o social face-a-face, para melhorar as “interações discursivas” em sala de aula (aí entram autores como Cesar Coll, Derk Edwards, Candela, Mercer, Mortimer, entre outros). Está buscando trabalhar a perspectiva de um social mais amplo, que remete a uma toda uma formação social mais ampla, ou histórico-social, que por sua vez vão considerar relações de poder. O sentido político é outro.
Se abandonamos a área, abandonamos nossa preocupação com os “conteúdos”, com o “conhecimento” e mesmo com o “pensamento”.  Abandonamos essas categorias e não as tensionamos. Essa é certamente uma opção teórico-metodológica. Mas é preciso saber que existem outras que merecem igual respeito. Outras que não pretendem fundar um novo reino, embora questionem pressupostos arraigados do reinado atual.
Se não saímos da área,  o esforço que empreendemos para trazer o elemento teórico do poder, por exemplo, para além da escala do face-a-face, para nossa reflexão e pesquisa dentro da área (uma área que exclui isso historicamente), já é tão grande que as diferenças entre a noção de poder em trabalhos de Foucault  e aquela que se pode depreender de trabalhos de Pêcheux será tão pequena que se torna irrelevante, sobressaindo-se muito mais as similaridades. Não nos preocupamos com as distâncias entre as estrelas e a Terra se estamos querendo ver constelações. Por outro lado, se você está no campo dos estudos foucaultianos, e vai dialogar com foucaultianos,  está no campo de quem produz conhecimento para fazer crescer este campo e não o da educação científica. Então ali sim, importam nuanças entre diferentes autores e importa sim a citação de originais. Enfim, se está buscando construir outro território para reinar.
Para mim, Pêcheux e Foucault não servem à construção de outro território, mas a deslocamentos possíveis no próprio campo, que, certamente será outro, mas que certamente não sabemos.

O que tenho aprendido com a AD de origem francesa, mas principalmente com Foucault, é considerar o campo da educação científica e da educação em geral como um campo de produção de possibilidades.  Aprendi que precisamos lutar para possibilitar e não impedir a fala do outro, pois esta fala do outro representa uma possibilidade além da nossa e é a pluralidade que importa, a diferença. Questionar para calar? Nada menos foucaultiano…  Questionar para fazer aparecer o singular, num campo específico.  Eis o que aprendi com Foucault.

Eis alguns autores e autoras que tenho mobilizado nos trabalhos que desenvolvo e oriento.
Maria Rose Bueno Fisher tive o prazer de conhecer quando participou da banca de qualificação da minha então orientanda de doutorado, Mariana Brasil Ramos, ainda na Unicamp.  Ela é uma autora reconhecida tanto dentro do campo dos estudos foucautianos quanto dentro do campo da educação. Seu livro “Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão”, da coleção Estudos foucaultianos da editora autêntica em 2012, reúne alguns de seus principais textos sobre como tem mobilizado ideias de Foucault em seus trabalhos em educação.  Sua escrita é extremamente interessante. Ela mantém rigor teórico em textos que conversam com leitores, principalmente leitores ainda com pouca experiência com Foucault propriamente dito. Sua formação, jornalismo, Letras e pós-graduação em Educação. Se você é da área de educação em ciência e matemática e quer conhecer Foucault pelo viés da educação, certamente é uma leitura que indico.

Já Maria do Rosário Gregolin é formada em Letras com doutorado em Linguística. Ela está entre as autoras do campo da linguística que trabalham com AD que vêm analisando as proximidades e distanciamentos entre AD de Pêcheux e Foucault, o que resultou, entre vários artigos, no livro “Foucault e Pêcheux na análise do discurso – diálogos e duelo”, publicado pela Claraluz em 2004. Em alguns de seus artigos, esta autora, também cita trabalhos de Maria Bueno Fisher, incorporando suas ideias. Outro de seu livro, organizado com Robeto Baronas, é “Análise do discurso: as materialidades do sentido”.

Aos que desejarem uma introdução às diferenças entre Foucault, Pêcheux e a Sociolinguística, indico o excelente texto de  Claudiana Narzetti, ao qual só faço a ressalva de, por se restringir às décadas de 60-70, não incluiu as contribuições de Eni Orlandi à noção de ideologia dentro da AD de Pêcheux. Essa inclusão modificaria bastante suas conclusões, o que mostra como essas diferenciações e territorialidades são complexas.

Finalizo então elencando algumas ideias que circulam pelos corredores, bares e salas e que pretendo questionar nas próximas postagens visando contribuir para que os leitores, principalmente estudantes de pós-graduação da nossa área, conheçam um pouco melhor da perspectiva teórica da AD e das implicações que ela traz para a nossa área. Tais ideias não correspondem à perspectiva da AD de origem francesa ligada aos trabalhos de Pêcheux.
“A gente é que produz sentidos quando lê. Se um texto não carrega sentido, é o sujeito que dá sentido ao texto”.
“A AD é uma metodologia, uma forma de análise.”
“Quando utilizamos AD no ensino de ciência estamos dizendo que qualquer sentido pode, qualquer sentido vale”.
“Se usamos uma mesma teoria para pensar a leitura de textos científicos que é utilizada para pensar a leitura de textos literários e outros tipos de textos, estamos igualando a ciência à literatura”.