Análise de discurso, sujeito e conhecimento científico

Uma das ideias equivocadas que circulam sobre AD nos campos de educação científica e tecnológica e educação matemática encontra-se associada a formulações desse tipo:

“Para a análise de discurso, é o sujeito que atribui sentidos… então a produção de sentidos é algo subjetivo.”

Essa confusão tem pelo menos duas consequências. Uma delas é a associação que chega a ser absurda entre AD e anti-ciência. A outra, é uma dificuldade em compreender as especificidades metodológicas de trabalhos que se pautam na AD como referencial teórico-metodológico. Em relação à primeira, faço um breve comentário abaixo. Em relação à segundo, desenvolverei melhor em outras postagens.

Quando uma formulação como essa acontece no interior de uma região de pensamento em que funciona a memória de discussões envolvendo termos e oposições como objetividade x subjetividade, ela adquire, equivocadamente, um efeito de “anti-ciência”. Para aquele que profere formulações como essa, alguém que utiliza ou se filia à análise de discurso seria automática e apressadamente identificado como alguém do “campo anti-ciência”. Esse sujeito poderia proferir enunciados como “A AD não pode ser usada no ensino de ciência porque ela é uma teoria subjetiva e a ciência é objetiva”… Bem, em relação às discussões sobre objetividade x subjetividade, penso  que já houve avanços significativos nos estudos epistemológicos que levam muito além dessa visão simplista que, infelizmente, pode acabar sobrando quando se sai de um curso muito introdutório de epistemologia.

Mas não é o problema da falta de conhecimento mais aprofundado e atualizado sobre epistemologia como fonte de uma concepção como essa que quero abordar aqui. Gostaria de apontar o equívoco em associar AD com essa “anti-ciência”, que deriva por sua vez de uma falta de compreensão de um dos pontos fundamentais e distintivos da Análise de Discurso de origem francesa, que reside justamente no modo como ela desloca nossa concepção comum e arraigada de sujeito. Se há discursos “anti-ciência”, não há absolutamente nenhum ligação entre AD e esses discursos, ou nada nas teorizações e procedimentos analíticos da AD que autorize um anticientificismo, a não ser num nível de superficialidade do qual seria melhor nos precavermos e nos afastarmos.

Não é que a AD seja “anti-ciência” (ou “valorize a irracionalidade”), é que, ao deslocar nossa visão mais tradicional de sujeito (que em certa medida, mas apenas em certa medida, coincide com o sujeito cartesiano) ela coloca dificuldades para visões já arraigadas de ciência, fundamentadas nesse “sujeito cartesiano”. É aí reside o incômodo, mal canalizado e compreendido, desse choque num dos pilares dessa visão, que reside em associar “conhecimento” com “sujeito de conhecimento”, e “sujeito de conhecimento” como “sujeito consciente de conhecimento” e supor que razão e consciência sejam sinônimos ou equivalentes.

Ou seja, a AD pode ajudar a avançar numa crítica a certa visão de ciência. Mas não tem fundamento algum dizer que a AD seja uma critica à ciência ou que levaria ao irracioalismo.

Mas isso seria assunto para outros escritos. O ponto chave aqui é a questão do sujeito na AD e porque isso incomoda.

Michel Pêcheux

A noção de sujeito na AD francesa

A AD surge na França na década de 60 colocando-se justamente como uma teoria não-subjetivista da linguagem. A visão mais comum que temos em relação à linguagem é a de que nós seríamos a origem do que dizemos. O que dizemos “viria da nossa cabeça”. Ao se opor a essa visão, a AD vai assumir desde o princípio que o sujeito não controla totalmente a linguagem, os sentidos, e vai trabalhar metodologicamente com esse nível do não-controlável pelo intencionalidade do sujeito. Essa posição tem a ver com sua raiz teórica tripla: ela é construída na região teórica entre o marxismo (principalmente no marxismo althusseriano, formação ideológica, formações sociais, etc.), a psicanálise e a linguística.

Ora, a linguística se constitui justamente construindo um objeto, a língua, que independe do sujeito, e à qual, ao contrário, é o sujeito que se submeter, sem o saber.

A língua é um sistema de regras que não depende do sujeito. A psicanálise também vai deslocar o sujeito como centro para mostrar que há processos não intencionais, embora estruturais. Aí o trabalho de Lacan, com seu conceito de sujeito presente no famoso texto (e confesso, de difícil compreensão): “O estádio do espelho”. [notar que este texto está na coletânea de Slavoj Zizek, “Um mapa da ideologia”].

E o marxismo, por sua vez, vai deslocar a centralidade de um sujeito consciente com a noção de ideologia. Althusser ainda foi mais além ao associar a ideologia não a um sujeito pré-existente mas à própria existência do sujeito. Curiosamente, apesar de Foucault não se basear nem na noção de ideologia (no marxismo), nem na lingüística, nem na psicanálise, também vai trabalhar uma noção não-subjetivista de discurso. Se em Althusser temos a história sem sujeito, em Foucault, que participava das reuniões do círculo epistemológico althusseriano , temos o priori histórico.

Para AD francesa, sujeitos e sentidos são constituídos simultaneamente. Sujeitos, enquanto posições num jogo de produção de sentidos.

Vejamos uma das formulações do próprio Pêchuex, entre outroas, a que remete à sua filiação althusseriana:

“Acabamos de encontrar, pela primeira vez, a categoria filosófica processo sem sujeito, que constitui o ‘fio vermelho’ deste estudo. Reencontraremos essa categoria, após um desvio bastante longo e inevitavelmente ‘especializado’, pelo qual, munidos das teses materialistas que acabamos de enunciar, caminharemos da evidência (lógico-linguistica) do sujeito – inerente à filosofia da linguagem enquanto filosofia espontânea da Linguística – até o que permite pensar a ‘forma-sujeito’(e, especificamente, o ‘sujeito do discurso’) como um efeito determinado do processo sem sujeito.” (Pêcheux, 1995, p. 77)

O sujeito não é a origem dos sentidos do que diz. A AD vai fazer trabalhar, na relação com a linguagem, justamente a ilusão (aliás, constitutiva) da transparência do sujeito para si mesmo.

Eni Orlandi apresenta uma reflexão sobre essa temática do sujeito “assujeitado” num belíssimo artigo intitulado “Por uma teoria discursiva da resistência do sujeito”, no livro “Discurso em Análise: sujeito, sentido, ideologia”, da Editora Pontes, cuja 2ª edição é de 2012.

A AD não trabalha com o sujeito falante. Quando falamos em sujeito não apontamos para alguém especificamente, para um indivíduo. Nas palavras de Fernandes (2008),

 “A referência ao sujeito falante remete a perspectiva teóricas que se ocupam do sujeito empírico, individualizado, que, dada a sua natureza psicológica, tem a capacidade para a aquisição da língua e a utiliza em conformidade com o contexto sociocultural imediato, no qual tem existência.” (p. 69)

O sujeito nesta citação não é o sujeito da AD.

O sujeito na AD está relacionado com o funcionamento da dimensão simbólica da realidade social e cultural, e, por isso, com o imaginário.

 

O que isso tem a ver com a epistemologia? Ou seja, onde realmente incomoda?

Se temos uma concepção de razão ligada à noção de consciência, então teremos problemas para relacionar razão, pensamento e conhecimento de um lado e essa noção de sujeito trazida pela AD. Essa relação terá que ser deslocada.

Embora não possa desenvolver aqui (e eis um tema quente para um doutorado…), vejo tanto os trabalhos tanto de Kuhn quanto de Fleck (o primeiro explicitamente bebendo no segundo Wittgenstein) como exemplos que vão nessa direção. Ou seja, na construção de uma teoria em que a racionalidade não esteja centra nos sujeitos conscientes… mas que se impõe socialmente aos sujeitos os constituindo enquanto sujeitos cognoscentes (eis o papel das paradigmas, dos estilos de pensamento; basta lembrar o quanto Fleck fala em coerção)[2].

Penso que a teoria da transposição didática de Chevallard também foi influenciada por essa concepção de sujeito, embora poucos tenham percebido isso.  No seu livro “La transposición didáctica” (a tradução argentina que eu conheço), notam-se nas referências trabalhos de Althusser [1] e do próprio Pêcheux (além de Foucault e Maingueneau).

Isso aponta para o fato de que trabalhar com essa noção de sujeito não significa considerar a ciência como um empreendimento irracional. De modo algum. Nenhum desses autores defendeu nem chegou perto de tal barbaridade intelectual. Significa que temos que repensar nossa concepção da relação entre sujeito e conhecimento, sujeito e pensamento.

O conhecimento, mesmo o científico, ainda tem que se haver com o simbólico. E o espaço do simbólico tem pelo menos duas características: jamais permite um fechamento completo e jamais permite controle e acesso total pelo sujeito.

Se compreendermos o sujeito cognoscente como um sujeito produzido social historicamente envolvido num sistema de coerções (necessárias, mesmo que problemáticas), um sujeito que pensa, mas não tem acesso a tudo o que pensa (isso inclusive é bachelardiano… autor também ali na origem dos pensamentos de Foucault e Pêcheux), podemos compreender os sistemas educacionais por outro ângulo. É essa outra visada que buscamos quando mobilizamos a AD francesa.

 

Notas:

[1] na página 12, por exemplo, para justificar a razão de sua teoria, ele fala da necessidade de coloca nesse objeto um determinismo próprio, assumindo uma posição materialista.
[2] Vários autores têm analisado as aproximações e diferenças entre esses três autores, Fleck, Foucault e Kuhn.

 

Referências

Fernandes, Cleudemar A. De sujeito a subjetividade na análise de discurso. IN: Sargentini, V. e Gregolin, M. R. (org.). Análise do discurso: heranças, métodos e objetos. São Carlos: Editora Claraluz, 2008, p. 69-82.

Pêcheux, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 2ª Ed. Campinas, SP: Pontes, 1995.