Ainda sobre Feenberg e educação científica e tecnológica

Ainda sobre Feenberg  e sua filosofia crítica da tecnologia, após o estudo e discussão do cap. 2, Racionalização subversiva: tecnologia, poder e democracia, gostaria de colocar três pontos.

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O primeiro, uma proposta de reflexão aqui no blog.
Os dois vídeos abaixo apresentam as primeiras cenas do filme Os deuses devem estar loucos, produção da África do Sul, de 1980. Considerando a garrafa de coca-cola um artefato tecnológico seria interessante um exercício de reflexão sobre essas cenas referenciado pelas ideias de Andrew Feenberg. Vamos tentar? Que tal? Por onde começaríamos? Que ideias poderíamos mobilizar?

Parte 1

Parte 2

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O segundo ponto mereceria um ensaio e não uma simples menção como farei a seguir.  Em aula, alguns alunos manifestaram uma percepção particular do texto: acharam-no “datado”.  Como trabalho com Análise de Discurso, procuro ver as interpretações em seu contexto.  Destaco esse ponto, porque não foi apenas um aluno que fez essa leitura. Estamos numa disciplina de tecnologias educacionais e educação tecnológica com foco nas tecnologias digitais. Embora as leituras anteriores de Motoyama e de Feenberg colocassem em questão a tecnologia num sentido mais amplo, a expectativa de todos, de certa maneira até deslocada porque não correspondida nas primeiras aulas, é a de se discutir as tecnologias digitais. Feenberg, no entanto, até menciona, entre seus exemplos, um sobre essas tecnologias, e de fato, produziu outros textos especificos sobre isso e fez parte dos primeiros debates político-tecnológicos no nascimento da internet. Mas sua perspectiva filosófica é realmente mais ampla. E, por ser mais ampla, abarca as tecnologias industriais e, principalmente se referem a elas. Ele está buscando redefinir ali os sentidos de tecnologia em geral sem se preocupar com especificidades e diferenças. E o incômodo de alguns alunos colocou em questão justamente essas diferenças no sentido de que talvez as tecnologias digitais já estejam surgindo num contexto histórico  já muito mais  democrático, no sentido colocado pelo próprio Feenberg, do o das das tecnologias industriais, o que dá à sua crítica uma certa obsolência. As tecnologias industriais e as tecnologias digitais talvez sejam peças de contextos histórico-culturais diferentes que o tipo de análise empreendido por Feenberg não possa captar. Necessitaremos certamente de outros autores. Mas a existência dessa talvez limitação em dar conta de diferenças, não retira o potencial de análise e aplicação dos conceitos de Feenberg também para as tecnologias digitais. Ao final deste cap. 2, Feenberg parece indicar que já vivemos numa sociedade com alguma mudança democrática em curso quando coloca:

Tais controvérsias tecnológicas se tornaram uma característica inevitável da vida política contemporânea, revelando os parâmetros para a “avaliação da tecnologia” oficial. (p. 125)

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E eis o terceiro ponto, muito discutido na aula, relativo à seguinte questão: o que podemos derivar das reflexões de Feenberg para o campo educacional? Vários aspectos foram apontados. Comentarei apenas um deles. Feenberg demonstra que os códigos técnicos incorporam valores, e resgata a dimeensão interpretativa das tecnologias, na medida em que elas resultam de um processo não linear, nem unidirecional, nem inequívoco. Ou seja, não há uma única solução técnica para os problemas. Um papel que a escola poderia desempenhar seria, então, 1) desmistificar a ilusão da necessidade técnica, e 2) expor a relatividade das escolhas técnicas predominantes.

Mas isso não significa restringir o discurso escolar apenas a debates sobre o conhecimento científico e tecnológico, apenas a um falar sobre tecnologias, ainda que a dimensão meta precise estar presente. Trata-se, além disso, de expor e trabalhar sentidos tecnológicos e científicos em seu funcionamento socialmente não unívoco e nem inequívoco, mas inseridos num jogo, num jogo social de interpretação.

Penso que a discussão da próxima aula, sobre um texto de Brian Wynne (Saberes em contexto), dará exemplos muito bons de conhecimentos científico-tecnológicos funcionando efetivamente em contextos sociais de controvérsias em que experts não poderão jamais dizer tudo, e talvez nem o principal, sobre uma questão, ainda que essa questão envolva ciência e tecnologia. É a mudança da relação entre experts e público que está em jogo. Ora, as implicações disso para o campo da educação científica e tecnológica já vêm sendo discutidas… mas ainda há muito o que se avançar. E aqui, as tecnologias digitais, notadamente as de informação e comunicação, certamente poderão ter um papel importante nessa democratização estendida à produção dos dispositivos técnicos e tecnológicos como proposta por Feenberg, se contribuírem para modificar as formas como as pessoas mobilizam, têm acesso e demandam conhecimentos científicos e tecnológicos.