Sobre Feenberg: para que uma filosofia da tecnologia?

Andrew Feenberg em entrevista no Brasil

Na última aula, discutimos o cap. 1 da coletânea de textos de Andrew Feenberg traduzidos para o português, em que ele expõe bastante sintética, e, por isso, densamente, o que considera como filosofia da tecnologia, sua importância, seu papel, e suas principais vertentes. Você pode ver aqui a postagem anterior sobre isso, quando discutimos esse texto no segundo semestre de 2012.

Segundo Feenberg, uma filosofia da tecnologia já teria começado com gregos antigos, e, então, seu texto passa por conceitos como de techne, episteme, poesis, existência e essência, que, para nós não filósofos, certamente soa algo vertiginoso, para chegar nas concepções que caracterizam a modernidade e seus problemas.

Mas há várias formas de compreender e se relacionar com um texto. Várias das ideias ali colocadas en passant, o autor vai desenvolver em outros textos da mesma coletânea, havendo, portanto, possibilidades ali mesmo de aprofundamento. Se perdemos algo pela falta de conhecimentos filosóficos (vale lembrar que neste semestre temos um filósofo em sala, que contribuiu para que nos detivéssemos algo mais em alguns conceitos), ganhamos na ideia geral que o autor traz para nossa reflexão sobre tecnologia, notadamente, para o campo da mediação tecnológica na educação e da educação tecnológica.

Essa ideia geral poderia ser sintetizada da seguinte forma: há valores “embutidos” nas tecnologias. Elas não seriam neutras, e os valores não estariam apenas naqueles que as utilizam, na sua utilização. A ideia que Feenberg defende, como um dos principais autores de uma teoria crítica da tecnologia, é a de que as tecnologias são “estruturas para formas de vida” (p. 50).

Para chegar aos aspectos centrais da visão filosófica da tecnologia que defende, a visão crítica, Feenberg identifica então quatro diferentes visões filosóficas a partir do cruzamento de dois grandes eixos. Num deles, a tecnologia pode ser, de um lado, considerada neutra, livre de valores, e, de outro, carregada intrinsecamente de valores. Num outro eixo perpendicular, a tecnologia poderá ser considerada autônoma, ou seja, como se desenvolvendo sozinha, por si mesma segundo regras e necessidades próprias, ou, por outro lado, humanamente controlada. Assim, teríamos no cruzamento desses eixos, quatro possibilidades de visões filosóficas.  A que o autor defende estaria no eixo que cruza “controle humano” com “carregada de valores”.  É esta visão filosófica de tecnologia que permite ao autor colocar a seguinte questão:

em que sentido a democracia pode ser estendida à tecnologia e sob que condições atuais? (p. 50)

Pensar o controle da tecnologia e sua relação com valores recoloca a questão da democracia para a tecnologia, ou seja, sua dimensão política. Uma sociedade democrática é aquela que se sustenta na pluralidade de valores colocados em discussão. É aquela que tem capacidade de se gerir nessa pluralidade e não apagando-a. Os estudos de Feenberg colocam em questão qual é o espaço em que a tecnologia está submetida à discussão.  Seria um espaço reservado apenas aos “entendidos”, ao peritos? Ou um espaço ampliado, onde outros atores entram em cena para também falarem, discutirem sobre tecnologia?

A esfera pública parece estar se abrindo lentamente para abranger os assuntos técnicos que eram vistos antigamente como exclusivos da esfera dos peritos. (p. 51)

Assim, as ideias de Feenberg nos ajudam a pensar esse espaço público, que é o espaço democrático, em que circulam conhecimentos tecnológicos de maneira heterogênea e diferenciando e repartindo possibilidades de acesso.  Ora esse espaço compreende a escola, embora, sendo mais amplo do que ela, compreenda também seu “em torno”. Espaço que não deixa de ter uma dimensão educacional, mesmo que não exclusivamente  escolar, cruzando a dimensão educacional com a dimensão comunicacional (como ciência e tecnologia são comunicadas ao grande público), a dimensão política e a dimensão técnica mesma da tecnologia.

O problema não está na tecnologia como tal, senão no nosso fracasso até agora em inventar instituições
apropriadas para exercer o controle humano da tecnologia. Poderíamos adequar a tecnologia, todavia, submetendo-a a um processo mais democrático no design e no desenvolvimento. (p. 48)

Temos muito que aprender com o pessoal da filosofia, e muito com o pessoal da comunicação, assim como com o pessoal da sociologia, mas temos aí uma contribuição fundamental, dada a existência dessa dimensão educacional. Dimensão educacional que parece cada dia se complexificar ainda mais, e, entre outros aspectos pelo próprio desenvolvimento mais recente de uma série de dispositivos tecnológicos de natureza digital ligados à comunicação e à informação.

Há outros aspectos ainda que os estudos de um autor como Feenberg podem nos ajudar: a olharmos para nós mesmos, prestarmos atenção em nossas discursos, nossas ideias, nossas posições sobre tecnologia, a percebermos a que visões estamos, em geral, inconscientemente, aderindo: uma visão determinista, instrumental, substantivista ou crítica? Isso vai repercutir em muito no modo como lidamos enquanto educadores com as tecnologias, principalmente as digitais, no modo como as escolhemos, intervimos em seu desenvolvimento, produzimos nossas arquiteturas pedagógicas ou comunicacionais em que elas estão inseridas.

Uma entrevista com o autor, no Brasil, de 2009, pode ser encontrada na Scientiae Studia.

Somos dominados pelas tecnologias? Ou dominamos as tecnologias? Ou, quem sabe, ambos? E o que a educação científica e tecnológica tem a ver com isso?