Alguns apontamentos sobre as ideias do filósofo Andrew Feenberg sobre Tecnologia 5

Se se trata de refletir sobre o que é tecnologia, não para buscar definições absolutas e fechadas, mas para nos fazer pensar sobre o que nós mesmos pensamos sobre ela e não sabemos, e sobre pensamentos sobre tecnologia que circulam numa sociedade como a nossa, autores como Feenberg certamente têm muita contribuição.
Não farei aqui um resumo dos textos que tenho lido e temos discutido em aula sobre Feenberg. A alguns leitores a conversa parecerá já ter começado.
Meu intuito é destacar alguns aspectos das ideias que ele apresenta e colocar suas possíveis implicações e desdobramentos tanto para a reflexão sobre as tecnologias em geral, entre elas as próprias TIC, tecnologias de informação e comunicação, quanto sobre a Educação Científica e Tecnológica. Acredito ser importante dar alguns passos atrás e, ampliando a paisagem, pensar a própria tecnologia, para poder pensá-la melhor quando assume o papel de mediação nos processos educacionais.
Tenho estudado Feenberg porque não é um autor que faz uma crítica destrutiva ou homogeneizante da tecnologia. A tecnologia não é nem e nem ruim. E nem é igual a qualquer outro produto da cultura humana, como nenhum produto da cultura humana é igual a outro. Feenberg também não propõe uma leitura da tecnologia que independa do próprio conhecimento tecnológico, como se conversas sérias sobre tecnologia não dependessem de conhecimentos técnicos/tecnológicos com suas especificidades. Na crítica de Feenberg há uma valorização da tecnologia de tal modo que o questionamento que ele coloca e busca enfrentar é justamente a necessidade de que seu controle e sua produção sejam mais democráticos.
Mas a ideia de associar democracia com tecnologia não é trivial. O que Feenberg faz é mostrar que ideias dificultam (como “obstáculos”…) que essa relação se torne compreensível, e sequer seja colocada.
No bojo da construção dessa relação entre democracia e tecnologia entra a questão dos valores. Pensar que a tecnologia está sempre associada a valores sociais é um dos obstáculos de pensamento a serem deslocados. Trata-se da questão da não-neutralidade. Neste sentido, creio que poderia colocar Feenberg num mesmo conjunto de outros autores que têm buscado trazer a questão dos valores para a compreensão da ciência e da tecnologia. Um autor que certamente é fundamental neste conjunto é Thomas Kuhn. Este autor vai mostrar como o desenvolvimento das ideias científicas é eivado por valores associados aos aspectos cognitivos, à produção, desenvolvimento, transformação dos pensamentos. Outro autor que trabalha nessa direção é Hugh Lacey, com várias obras publicadas no Brasil. (Não me arrisco a colocar Fleck neste conjunto por não conhecê-lo suficientemente… mas suspeito que ele merecesse estar aqui).
Outras concepções sobre filosofia da tecnologia podem ser encontradas em Alberto Cupani, também professor aqui da UFSC, em seu recente livro “Filosofia da tecnologia: um convite”. Numa visão mais sociológica, o livro de Renato Dagnino, “Neutralidade da ciência e determinismo tecnológico”, discute não só a questão da neutralidade como a do determinismo tecnológico, e apresenta um bom resumo das ideias de Feenberg.
Embora as ideias de Feenberg tenham relação com a chamada Escola de Frankfurt, nenhum dos autores dessa escola chegou a elaborar uma filosofia da tecnologia, como o fez Feenberg e, as concepções de tecnologia entre os diversos autores da Escola de Frankfurt não são as mesmas. Na Coletânea de artigos do Ciclo de Conferências da UnB em 2010, há um artigo em que Feenberg busca mostrar as diferenças entre suas ideias e as de Habermas a respeito da tecnologia. Cito Habermas porque foi trazido bastante à aula, não só por ser um autor vinculado à Escola de Frankfurt, mas ter desenvolvido ideias sobre as relações entre racionalidade, comunicação e democracia, e antes disso, ter trabalhado sobre o conceito de esfera pública, bastante retomado, discutido, aderido e criticado em discussões sobre as relações entre internet e democracia que ainda discutiremos no curso.

O problema colocado por Feenberg: Democracia e tecnologia

Para o autor, a democracia pode ser estendida para o domínio da tecnologia no sentido da necessidade ampliar os sistemas de controle sobre sua produção. Democracia no sentido que é pela democracia que escolhemos o mundo em que vivemos. É na democracia que está o exercício dessa escolha coletiva (não falo aqui necessariamente de democracia representativa ou deliberativa). O fato da produção da tecnologia significar a produção de algo que afeta a vida humana em sociedade torna necessário a vinculação da tecnologia e democracia.
Para Feenberg a tecnologia incorpora valores, mas esses valores não são estáticos, imutáveis, embora estejam parcialmente fixados no desenho dos dispositivos, o que ele chama de código técnico. “Poderíamos adequar a tecnologia, todavia, submetendo-a a um processo mais democrático no design e no desenvolvimento.” (p. 48).
Outro sentido muito associado ao de tecnologia é o de instrumentalização. À concepção de que tecnologias são meras ferramentas para atender a necessidades, o autor contrapõe a seguinte ideia: “Na teoria crítica, a tecnologia não é vista como ferramenta, mas como estrutura para estilos de vida.” (p. 50).
A esfera pública parece estar se abrindo lentamente para abranger os assuntos técnicos que eram vistos antigamente como exclusivos da esfera dos peritos.” (p. 51) Essa conversa entre peritos e não peritos não seria um tema importante para a educação científica e tecnológica?
Parte do distanciamento da questão tecnológica como uma questão de democracia está no fato de não se atribuir flexibilidade a tecnologia. Como se suas soluções e produtos derivassem de impositivos inquestionáveis, unidirecionais, unívocos.

Tecnologia é matéria de interpretação

Para Feenberg há uma hermenêutica associada à tecnologia, ideia que se opõe à de um sentido único. As tecnologias nunca têm um sentido único e podemos derivar daí a ideia de que há disputas em torno desses sentidos. Portanto, jamais há uma via única, totalmente predeterminada para a instrumentalização. Embora haja um sentido materializado no código técnico, há uma abertura, há possibilidade de “jogo”, no que Feenberg chama de instrumentalização secundária. Ou seja, os usuários podem modificar o sentido “impresso” do código técnico, no design da tecnologia.
É nesse sentido que vemos em Feenberg eu diria que não uma utopia, mas uma esperança. Uma esperança que pode ser trabalhada, concretizada, na ressignificação da tecnologia. Mas, para isso, é preciso deslocar seu significado. E para deslocar seu significado podemos pensar em várias possibilidades. As cenas iniciais do filme “Os deuses devem estar loucos” (cf. partes 1 e 2 no Youtube), quando a garrafa de coco-cola cai na aldeia é uma alegoria para essa ideia. Quando pegamos uma garrafa de coco-cola em nossa cultura parece que seu significado é único. Mas esquecemos que ele é uma construção cultural. Mas gostaria de lembrar jamais controlamos os sentidos totalmente de forma consciente (aprendemos isso com Freud há um bom tempo…). Portanto, esse trabalho de deslocamento pode envolver certamente o trabalho de consciência do jeito. Mas pode ser também, e em geral são as duas coisas, o resultado de inúmeros fatores dentro dos quais o próprio sujeito está imerso e faz parte deles.
Trazendo isso para o nosso campo podemos nos perguntar em que medida a escola pode trabalhar esses processos de significação/ressignificação da tecnologias e o próprio sentido de tecnologia? Poderíamos nos perguntar se ao trabalharmos conhecimentos científicos na escola não estaríamos ou poderíamos estar interferindo nessa hermenêutica da tecnologia.
Ao colocar a relação entre interpretação, hermenêutica e tecnologias Feenberg ressignifica a própria relação do sujeito com a tecnologia.  Não se trata de apenas diferenciar produtores de um lado e usuários do outro. O sujeito diante da tecnologia é um sujeito interpretante (consciente ou inconscientemente, interpretação como processo sócio-cultural). No entanto, é importante considerar que Feenberg considera a interpretação dos sujeitos (hermenêutica) um processo social e não puramente subjetivo, individual. O significa que cada um de nós atribui à coco-cola não é nosso individualmente. É por isso que vai trazer duas novas noções quando aborda a hermenêutica da tecnologia: a noção de significado social e a de horizonte cultural. Ambas estão implicadas na concepção de um sujeito social, sujos processos de significação não são individuais, mas sociais. Na página 114 da coletânea, a autor fala em “grupos sociais”.  Portanto não se trata de pensar como construímos sentidos individualmente para as tecnologias. Mas como os construímos coletivamente.

A noção de código técnico

Significaria a resposta ao horizonte cultural da sociedade no nível do desenho técnico. Por código técnico o autor está nos lembrando que aquilo que hoje se encontra como fixado, estabilizado no dispositivo como parte intrínseca de seu desenho não é o resultado de um processo natural, mas de uma possibilidade em meio a outras, que foram no entanto apagadas, porque o resultado não traz essa memória da pluralidade, mas produz o efeito da unicidade. Ao contrário, sob o signo da eficiência, passa a significar como se não tivesse havido outra alternativa.
Assim, poderíamos inferir que uma posição crítica em relação à tecnologia não seria uma posição necessariamente de negação, mas de “denúncia” de um sentido único.
Por isso Feenberg não desvalorização da tecnologia (cf. sua crítica à Heidegger), mas posiciona-se em relação à sua centralidade. O que implica no problema da democratização.
Se ela não fosse tão central… a democracia poderia não ser estendida à tecnologia…
Trata-se de pensar “a criação de uma nova esfera pública que inclua o background técnico da vida social, e um novo estilo de racionalização” (p. 126).
Trata-se de levar a democracia aos domínios tecnicamente mediados da vida social. (Podemos pensar as tecnologias da informação e comunicação nessa perspectiva?).
Outra derivação das ideias de Feenberg diz respeito às interlocuções entre especialistas e não-especialistas. Se aceitarmos a ideia do autor de que a democracia pode ser estendida à tecnologia, e lembrarmos que elas envolvem conhecimentos que apenas alguns dominam, o problema da democratização da tecnologia passará também pelo problema da comunicação entre esses atores. No contexto histórico atual, após inúmeras transformações da vida e da sociedade associadas a desenvolvimento tecnológico, temos um desenvolvimento e algumas mudanças de uma complexidade e com características singulares: agora as tecnologias mais do que nunca afetam a própria comunicação, a própria produção e circulação dos conhecimentos e informações.

Fontes
Coletânea de Traduções de textos de Andrew Feenberg, organizada por Ricardo Neder.
Homepage de Andrew Feenberg

 

 

Comentários

  1. Angelisa Benetti Clebsch disse:

    Temos discutido a partir das ideias de Feenberg que a democratização da tecnologia envolve a participação das pessoas (leigos e especialistas) na definição do design e desenvolvimento das tecnologias, o que exige argumentos pois não é possível opinar se não há conhecimento sobre o assunto. Neste cenário é que a educação científica e tecnológica pode ganhar destaque. Através dela podemos desmistificar a tecnologia no sentido de fazer o estudante entender que a tecnologia não é natural, ela é produzida, impregnada de valores (que muitas vezes não vem impressos no código técnico)e passível de interpretação.
    Feenberg critica a neutralidade da tecnologia e seu desenvolvimento unilinear presente nas filosofias tecnocratas. De acordo com a filosofia crítica da tecnologia de Feenberg a tecnologia é condicionada por valores e há múltiplas possibilidades de evolução tecnológica para as sociedades. Assim, a educação científica e tecnológica deve estimular as pessoas a participarem do processo de democratização das tecnologia, a questionar os valores da sociedade capitalista – do consumismo como sinônimo de realização e condição para participação em grupos. Temos que discutir com os estudantes os impactos ambientais e custos energéticos na produção das tecnologias questionando o modelo de sociedade onde as pessoas são estimuladas – através da mídia – a comprar determinados equipamentos sem necessidade simplesmente para dizerem que tem o último modelo e sentirem-se integrantes de um grupo.

    1. Henrique Silva disse:

      Angelisa, você traz um elemento importante para a conversa, que é o que realmente costura nossas reflexões e leituras, e que no post é só anunciado: a questão da educação. E, dentro disso, dois pontos. Um deles quando diz que não é possível opinar se não há conhecimentos sobre o assunto e o outro, ao que entendi, é que conhecimentos apenas não bastam, pois existem valores associados às tecnologias. Eu diria que eles não vêm explícitos no código técnico, mas estão aí. Ora, isso implica, antes de tudo, no âmbito da educação, em explicitá-los. Mas eis aí um problema. Como trabalhar esses valores? Você coloca uma ideia concreta, que seria a de nos opormos a certos valores. Certamente, essa é uma possibilidade. Mas uma dificuldade que vejo é a de “ler” esses valores… No caso que coloca, sociedade capitalista e consumismo, essas críticas nos ajudam a ver certos valores nas tecnologias… Mas eu diria que há muitos outros… E as tecnologias se incorporam, às vezes muito rapidamente, a certas práticas culturais e formas de vida, entrando numa rede de micro-valores, se é que se pode chamar assim, que torna a crítica a esses valores maiores, mais abrangentes, quase que inócua. Quanto ao outro ponto, a questão da necessidade de conhecimentos sobre o assunto, eis outro grande problema… fica a questão sobre como podemos pensar a nossa relação com esses conhecimentos…

  2. Angelisa Benetti Clebsch disse:

    É fato que as tecnologias tem se incorporado a cultura e modificado o modo de vida das pessoas. Percebo que as redes sociais, por exemplo, possibilitam contatos e relacionamentos virtuais com um número muito maior de pessoas em comparação a outras modos de comunicação utilizados em outras épocas (na nossa infância e adolescência). Acho importante, através da educação, tentar valorizar e retormar também os contatos presenciais com outras pessoas e com a natureza. Talvez as crianças e jovens estejam se tornando sedentárias e adquirindo hábitos não saudáveis por estarem muito tempo envolvidos com as tecnologias e até dependentes delas.

  3. Simone Leal disse:

    Henrique e Angelisa

    sem dúvidas as tecnologias da informação abrem novas possibilidades ampliam horizontes outrora nem mesmo questionados .
    O sedentarismo de jovens e adultos afixionados pelas redes sociais e pelo uso geral da internet , o isolamento social decorrente são fatos reais , como lidar com eles ? Um desafio sem precedentes na história da humanidade. A quantidade de informação despejada nas redes , como qualificá-las? Hoje falando um pouco com minha filha de 10 anos , sobre blogs ela me colocou: por que vc não faz um blog para colocar coisas legais ?? .. Disse a ela que já tinhamos um blog .. não , mas não para coisas de escola .. coisas de escola são podres .. Meus Deus ela estuda numa escola particular , tem apenas dez anos … Eles são apaixonados pelas redes sociais , mas para outros fins .. Diante deste fato como passar do quadro e giz para o mundo virtual/digital e realmente mudar a relação conhecimento escolar/científico e vida , e mundo real ?
    Ainda existe uma barreira, conhecimento científico e tecnológico transforma a vida das pessoas , é fato , mas é uma escolha ?

  4. Ana disse:

    Em relação ao uso da internet no ensino, tenho algumas colocações.
    Primeiro em relação à buropatia, existem muitos professores ainda hoje que se apegam em rotinas e regulamentos e resiste a qualquer forma de mudança. Segundo em relação existente entre metodologia e tecnologia, o vídeo abaixo apresenta bem este fato, é indiferente o uso de tecnologia, SE as metodologias são as mesmas.
    http://www.youtube.com/watch?v=Sf5B0KKtbjQ
    um terceiro e preocupante fator é em relação às crianças, temos que tomar cuidado com os conteúdos exibidos e os contatos em redes sociais. Existe um trecho muito forte do Globo Repórter que trata da questão da pedofilia na internet.
    http://www.youtube.com/watch?v=nFvPXp998lA